Adventistas de longa data, entusiastas ou não dos escritos de Ellen G. White, costumam não ter muito claro em mente o que é o Grande Conflito e no que ele consiste. Não que a culpa seja toda dos adventistas de longa data: de fato, até hoje não temos uma modelagem clara do Grande Conflito. Comparados com os membros leigos, os teólogos adventistas são muito mais responsáveis por esse estado de coisas, pois até hoje não apresentaram o tema de modo claro, plenamente inteligível.
Relacionar o Grande Conflito ao Evangelismo é uma tarefa ainda pior, pois agora são dois conceitos confusos ao invés de um só. Se uma ideia não está bem clara, compará-la a outra não ajuda em nada.
Rapidamente (o que certamente não é suficiente), vamos tentar conceituar o Grande Conflito e o Evangelismo, para ver se chegamos a um ponto de encontro. Creio que, para apresentar um breve esboço desse vínculo, não serão necessárias mais que três postagens. Nessa primeira, a ideia é apresentar os elementos fundamentais e a origem do Grande Conflito, conforme os escritos de Ellen G. White e a Bíblia. Na segunda postagem, o propósito será apresentar o estágio atual do Grande Conflito. Em seguida, na terceira, será apresentado o conceito bíblico de evangelismo e a relação dele com o Grande Conflito e sua resolução, ou ao menos essa será a tentativa. Se, ao final, ao menos uma única pessoa conseguir enxergar com mais clareza a conexão entre os dois assuntos, considerarei que a tarefa foi cumprida.
O Grande Conflito é uma ideia que surge da série de livros de Ellen G. White intitulado Conflito das Eras, ou Conflito dos Séculos, a qual foi escrita ao longo de seu ministério. O último livro da série leva o nome de O Grande Conflito, mas a ideia não se resume a esse livro. Embora o livro de fato seja muito importante, a série como um todo precisa ser considerada. Como então resumir os aspectos essenciais de uma série de livros que soma algumas milhares de páginas? Evidentemente, é necessário somar ainda a esses textos a própria Bíblia, que é o lastro primordial para a compreensão do Grande Conflito.
Primeiramente, o Grande Conflito é uma batalha entre Deus e Satanás e suas respectivas propostas de governo diametralmente opostas. A batalha não envolve nenhum tipo de violência física, pois, se envolvesse, não poderia durar mais que poucos segundos, uma vez que a onipotência de Deus não pode ser jamais comparada aos atributos de poder que Satanás possui. Logo, ela é uma batalha que se dá essencialmente no campo das ideias.
Aqui, logo de pronto surge aquela pergunta que nos fazemos quando criança: porque Deus não destruiu Satanás quando ele manifestou oposição? A resposta não tem como ser mais simples do que “porque Deus não age dessa forma”. De fato, se Deus agisse de outra forma, o universo seria completamente diferente. Entretanto, o Grande Conflito revela um motivo especial para Deus não ter agido com instantânea violência por ocasião do surgimento do pecado: Sua criação.
Antes mesmo do pecado, Deus havia percebido que a criação de seres dotados de livre arbítrio poderia em algum momento redundar em apostasia. O plano da redenção, formulado antes de tudo que se tem notícia, é a maior prova disso. Afinal, não há genuína liberdade em um universo de seres criados que não possuem outra opção na vida a não ser amar a Deus. Ele dotou o universo de valor intrínseco ao povoá-lo com seres inteligentes e livres. A Bíblia retrata um Deus que simplesmente ama a liberdade. Ao longo da história humana, Ele procura PERSUADIR e CONVENCER suas criaturas a ficarem do Seu lado, o que é a tônica de todo o velho testamento e do próprio Evangelho.
O Espírito de Profecia não é diferente. Quando Ellen White afirma que Jesus poderia ter voltado ainda no século XIX se o povo de Deus não tivesse retrocedido, existe aí uma afirmação adicional de que não retroceder era UMA OPÇÃO REAL. Muitos têm dito que, embora de fato a Irmã White tenha feito tal afirmação, DEUS CONHECIA SEU POVO E SABIA QUE ELE RETROCEDERIA naquele momento. Em resumo, nessa perspectiva, as palavras da Irmã White eram meramente, à época, um instrumento retórico para convencer o povo adventista de que deviam avançar, o que de qualquer forma não aconteceria naquele momento, sendo Deus conhecedor de todas as coisas, inclusive o futuro. Entretanto, permanece aí o fato de que se Deus sabia que o povo adventista retrocederia, realmente não havia o que ser feito, POIS O FUTURO NÃO PODE SER DIFERENTE DAQUILO QUE DEUS SABE QUE SERÁ. A essa constatação, é comum escutar a seguinte réplica: “mas Deus também sabia que seu povo poderia ter avançado”. Nesse caso, voltamos ao início do parágrafo: retroceder ou avançar são OPÇÕES REAIS.
Portanto, em um universo povoado por seres dotados de significativa inteligência e opções morais reais, a destruição imediata de Satanás por ocasião de seu primeiro e mais íntimo pecado no coração teria uma ou mais dessas consequências:
(1) A criação como um todo saberia que o mais importante dos anjos celestiais havia subitamente sido destruído por Deus, sem saber das circunstâncias da existência de um pecado íntimo.
(2) Seres inteligentes, dotados de opções reais, fazem a si mesmos perguntas. Deus deu a capacidade de reflexão a esses seres. Obviamente, a destruição de Satanás seria uma súbita mudança em todo o universo. A criação de Deus instintivamente perceberia a falta de Lúcifer. Da parte de Deus, fingir que tudo continuava como sempre foi seria cínico, o que Deus simplesmente não é, como a Bíblia demonstra sem dificuldades.
(3) Em Deus não sendo cínico, alguma mensagem precisaria ser dada à Sua criação. Nesse caso, como Deus não mente, Ele contaria à ela sobre a apostasia de Lúcifer.
(4) Tratar-se-ia de uma mensagem no mínimo estranha, uma vez que ninguém de fato poderia compreender, àquela altura, o que seria essa apostasia e de onde ela teria surgido.
(5) Além disso, ainda assim a destruição de Satanás poderia simplesmente soar arbitrária: Lúcifer era um ser bem quisto no universo. Sua destruição, totalmente súbita e aparentemente inexplicável, poderia soar mais que cruel. A mensagem ao universo seria a de um Deus que simplesmente não conhece o perdão. Naquele momento, a relação entre Deus e sua criação poderia se tornar uma relação baseada no medo.
Ao longo de toda a Bíblia, a relação de Deus com suas criaturas é uma relação completamente transparente e verdadeira. Ele convida suas criaturas à inquirição da verdade. Ele não dissimula, não oculta e não se satisfaz com meias respostas. À luz da Bíblia, esse SIMPLESMENTE É o caráter de Deus.
Perceba que, sendo Deus quem é, a destruição imediata de Lúcifer, embora evitasse o Grande Conflito, resultaria em alguma outra forma de situação totalmente indesejável. Deus não quer criaturas com medo, não quer retirar delas a inteligência ou a liberdade e tampouco quer destruí-las (esse seria outro possível caminho para evitar o Grande Conflito). Assim é que o conflito toma forma.
Porém, tudo isso é apenas o começo. Havendo Satanás pecado e sido poupado por Deus, o que acontece então? Há de um lado um Deus de amor, que convida suas criaturas a conhecer dEle e as atrai para Si, mas lhes dá liberdade para escolherem outro caminho. Do outro lado, há uma criatura orgulhosa, que em seu coração já não deseja conviver com Deus. O afastamento de Deus e dos Seus maravilhosos atributos leva-o a males cada vez maiores: desenvolve a justiça própria, o amor a si mesmo e o narcisismo. A agenda de Satanás assume uma forma clara: ele não considera o arrependimento uma opção e deseja o lugar do próprio Deus. Em resumo, ele quer o governo de todo o universo e de toda a criação, tanto vida quanto matéria inanimada. Acredita ser superior à Deus em inteligência e capacidade. Seu egoísmo e necessidade de autopromoção o leva diretamente à plateia atônita: a criação. Aqui se torna crucial o detalhe de que, no meio disso tudo, há uma criação inteligente e verdadeiramente livre, que entende o que está acontecendo.
Satanás apela à criação de Deus e lhes expõe seus pensamentos, entre os quais:
(1) Que ele é superior a Deus;
(2) Que seu pecado era inevitável, porque a lei moral que Deus impõe às suas criaturas é totalmente arbitrária e impossível de ser guardada;
(3) Que a noção de liberdade que Deus defende não é verdadeira, uma vez que implica em estrita obediência às Suas leis;
(4) Que a criação de Deus, se dotada de verdadeira liberdade de escolha, preferirá antes seu governo ao do Criador.
(5) Que, por fim, uma vez alçado a governador do universo, traria às suas criaturas mais liberdade e felicidade.
Tivesse Deus destruído Satanás nesse ponto, justiça teria sido feita, mas, considerando uma criação angustiada e perplexa, o estrago teria sido ainda maior do que antes, quando o pecado de Satanás não era público. Se Satanás não tivesse tido a oportunidade de se sagrar um completo mentiroso, a mensagem de Deus ao universo seria a de que Ele preferia não pagar para ver se uma ou mais das alegações de Satanás poderiam acabar verdadeiras. Novamente, Deus almeja que suas criaturas o amem e desejem Sua presença dia e noite por confiarem nEle plenamente. A dúvida é instrumento de Satanás e não de Deus. Ele sempre soube que o melhor para Sua criação é um governo baseado no amor, no altruísmo e no esvaziamento de si. Deus confiou em que suas criaturas reconheceriam isso e fariam uma escolha consciente. Para tanto, colocou-se voluntariamente no lugar de réu, permitindo aos seres criados escutar as acusações a Ele dirigidas e avaliar as evidências apresentadas pelo acusador. Um governo tal como o de Satanás centrado no eu e nas próprias vontades, só poderia, já sabia Ele, levar Sua criação à completa ruína, o que Satanás tem demonstrado sistematicamente ao longo dos séculos.
O Grande Conflito, de modo bem resumido, consiste basicamente nisso. A maioria das afirmações e ideias mais claras e enfáticas surge diretamente dos textos publicados ao longo do ministério de Ellen G. White, ao passo que algumas outras são consequência imediata do conteúdo desses textos. Embora não haja afirmações bíblicas diretas para a maioria das questões, as noções mais importantes emanam das Escrituras: criação, livre arbítrio, pecado e redenção.
Na próxima postagem, lembraremos em que estágio o Grande Conflito atualmente se encontra.
Até lá!
Lucas
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