O Deus que arrisca Seu trono
Parte 1 – A fé em um Deus que não se arrisca
O trono de Deus está em risco e cabe ao povo que professa amá-Lo desfazer a horrenda ameaça que ainda persiste, mas esse povo decididamente se recusa a aceitar tal fato. Como será possível nos levantarmos para fazer frente aos perigos aos quais o trono de Deus está sujeito se nem ao menos reconhecemos que tal perigo existe? A resposta é que, nessas circunstâncias, certamente não será possível de forma alguma. Ignorada e relegada como um delírio da mente, a ameaça ao trono de Deus se encaminha a passos largos à sua materialização.
Quem é o maior interessado, portanto, na afirmação de que não existem riscos ao trono de Deus? A quem interessa a narrativa histórica que apresenta o Grande Conflito como uma guerra já irreversivelmente vencida por Deus e Seus anjos? Quem sai ganhando quando se desvanece nas mentes dos combatentes de Deus aquela impressão viva e duradoura da monstruosa violência que permeia a vida espiritual e indica que ainda há uma guerra para se vencer? Com certeza não é Deus, que precisa de um povo que vá em Seu socorro, mas o próprio inimigo de Deus. De fato, Satanás tem encontrado formas engenhosas e muito bem articuladas para resguardar seu interesse em ocultar as ameaças que seu governo representa. Sua estratégia é milenar: ele convence o ser humano de que o trono de Deus não está em risco ao apresentar a ele, com palavras e ilustrações escolhidas a dedo, um Deus que jamais se expõe a riscos. Ao nos convencer disso, ele ganha o terreno de nossas mentes para avançar com decidida violência.
“Sem o correto conhecimento de Deus, a família humana seria despojada de toda força divina. Com falsos atributos mantidos perante a mente como pertencendo a Deus, a família humana seria joguetes das mentiras satânicas e objetos das agências satânicas, e ele poderia abusar com êxito da ingenuidade deles.”
EGW Manuscrito 51, 1890
Rastreando até suas origens a antiga mentira de que Deus não corre riscos
A mentira que Satanás sustenta entre os protestantes se apresenta de duas formas distintas: (1) Deus, em Sua onipotência, é a causa de tudo; (2) Deus, em Sua onisciência, sabe todo o futuro. Essas são, basicamente, as duas mentiras propagadas pelo inimigo de Deus para inviabilizar qualquer possibilidade de que Seu povo compreenda que Seu trono corre perigo. Isso é muito simples: se eu creio na afirmação (1), de que Deus causa todas as coisas, é simplesmente impossível eu crer que Seu trono esteja ameaçado, porque tal ameaça teria que partir do próprio Deus, do mesmo modo que a solução para tal risco teria que partir unicamente dEle. Ou seja, nesse cenário Deus tem total controle sobre Seu próprio trono, o que implica exposição zero a qualquer tipo de risco. De modo semelhante, se eu creio na afirmação (2), de que Deus sabe todo o futuro, eu precisarei crer que Deus já sabe qual será o inevitável desenlace para Seu trono. Se Deus olha adiante por meio de Sua infalível onisciência e enxerga Seu trono assegurado por toda a eternidade, ele está de fato assegurado por toda a eternidade. Do mesmo modo, se Deus olha adiante e enxerga a concretização das ameaças a Seu trono, a queda de Seu governo já é uma certeza consumada. Em ambos os casos, há um decreto que não deixa margem para riscos ou indefinição: Deus já venceu ou já foi vencido. Eis portanto um fato inexorável do qual Satanás se vale com grande engenho: quem crê na onipotência ou na onisciência de Deus nestes termos descartará de pronto a ideia de que Ele corre riscos.
Onipotência e onisciência absolutas: dois lados de uma mesma moeda
Essas duas formas de apresentar um Deus que não corre riscos estão associadas às duas principais correntes teológicas no meio protestante. A afirmação de que Deus em Sua onipotência é a causa de tudo está associada ao calvinismo, ao passo que a afirmação de que Deus em Sua onisciência sabe todo o futuro está associada ao arminianismo. Malgrado o recorrente antagonismo entre essas duas vertentes teológicas, ambas se abraçam para defender um importante ponto em comum: a predestinação incondicional. Tanto no calvinismo quanto no arminianismo há a ideia de que Deus decretou toda a história futura desde a eternidade pregressa. O ponto de distinção entre esses dois sistemas teológicos é unicamente que no calvinismo Deus causou de antemão toda a história, ao passo que no arminianismo Deus a anteviu. No primeiro caso, a predestinação absoluta se dá pela via da causação direta de Deus, enquanto no segundo, pela via da presciência divina. Isso fica suficiente esclarecido nas palavras diretas de Calvino e Armínio. Calvino escreveu:
“A predestinação pela qual Deus adota alguns para a esperança da vida, e julga outros para a morte eterna, nenhum homem que seria considerado piedoso se aventura simplesmente a negar; mas é muito criticado, especialmente por aqueles que fazem da presciência a sua causa. Na verdade, atribuímos tanto a presciência como a predestinação a Deus; mas dizemos que é absurdo subordinar este último ao primeiro (ver cap. 22, sec. 1). Quando atribuímos presciência a Deus, queremos dizer que todas as coisas sempre estiveram e continuam sob seus olhos; que, até onde ele sabe, não há passado nem futuro, mas todas as coisas estão presentes, e na verdade tão presentes, que não é apenas a ideia delas que está diante dele (como são aqueles objetos que retemos em nossa memória), mas que ele realmente os vê e contempla como se estivessem realmente sob sua inspeção imediata. Esta presciência se estende a todo o circuito do mundo e a todas as criaturas. Por predestinação entendemos o decreto eterno de Deus, pelo qual ele determinou consigo mesmo tudo o que desejava que acontecesse em relação a cada homem. Nem todos foram criados em igualdade de condições, mas alguns são predestinados à vida eterna, outros à condenação eterna; e, consequentemente, como cada um foi criado para um ou outro desses fins, dizemos que ele foi predestinado à vida ou à morte. Isto Deus testificou, não apenas no caso de indivíduos particulares;”1
Armínio, por sua vez, declarou que:
“A predestinação, portanto, no que diz respeito à coisa em si, é o decreto do beneplácito de Deus em Cristo, pelo qual ele resolveu dentro de si mesmo, desde toda a eternidade, justificar, adotar e dotar de vida eterna, para louvor de sua própria graça gloriosa, crentes a quem ele decretou conceder fé (Ef 1; Rom 9).”2
E ainda:
“A estes sucede o quarto decreto, pelo qual Deus decretou salvar e condenar certas pessoas em particular. Este decreto tem seu fundamento na presciência de Deus, pela qual ele conheceu desde toda a eternidade aqueles indivíduos que, através de sua graça preventiva, acreditariam, e, através de sua graça subsequente, perseverariam, de acordo com a administração descrita anteriormente daqueles meios que são adequados e próprios para conversão e fé; e, por essa presciência, ele também conheceu aqueles que não acreditariam e não perseverariam.”3
Perceba-se que, segundo Calvino, Deus, por meio de um decreto eterno, preordenou a salvação ou perdição de cada um dos homens. Armínio, na primeira citação, afirma algo bastante parecido, a saber, que Deus, desde a eternidade, outorgou vida eterna àqueles a quem decidiu conceder fé. E o ponto fica suficientemente esclarecido na segunda citação: o decreto predestinador de Deus tem seu fundamento na presciência divina. Ou seja, ambos, Calvino e Armínio, afirmam basicamente a mesma coisa: Deus predestinou absolutamente tudo. Armínio apenas procurou amenizar os problemas que derivam da ideia de que Deus causou inclusive o mal, o que de fato não logrou fazer, ao desvincular a predestinação incondicional dos homens da ação direta de Deus e conectá-la à Sua presciência.
Por fim, o mais importante a se notar nas palavras de Calvino e Armínio é a semelhança no modo com que se referem à posição de Deus em relação ao tempo: de acordo com Calvino, para Deus “não há passado ou futuro, mas todas as coisas estão no presente” e Ele “verdadeiramente os vê e contempla (os eventos do passado e futuro) como se estivessem realmente abaixo de sua imediata inspeção”. Armínio, semelhantemente, nas duas citações utiliza a expressão “desde a eternidade” para se referir ao tempo em que Deus (1) decretou a justificação daqueles a quem decidiu conceder fé e (2) anteviu aqueles que creriam e perseverariam. Ambos, Calvino e Armínio, criam em um Deus que enxerga, pelo lado de fora, todos os eventos da história como uma única imagem estática, o que é o mesmo que crer na atemporalidade de Deus ou que Ele, em outras palavras, habita fora da dimensão temporal. Fica evidente ainda que a ideia de predestinação incondicional ou absoluta está intimamente ligada a essa ideia de atemporalidade. Nesta visão,quer tenha sido pela via da causação direta ou da presciência, Deus predestinou toda a história na medida em que está dissociado dela e do próprio tempo. Passado, presente e futuro se apresentam diante dEle como uma única imagem imóvel.
As origens da ideia da atemporalidade de Deus
Uma vez identificado que o ponto de convergência entre Calvino e Armínio é a atemporalidade de Deus e a consequente ideia de predestinação que dela deriva, cabe-nos perguntar: de onde vem a proposição de um Deus atemporal? O próprio Calvino explicita qual é sua principal fonte de inspiração, ao afirmar que:
“Agostinho está tão inteiramente comigo, que se eu quisesse escrever uma confissão de minha fé, eu poderia fazê-lo com toda a plenitude e satisfação para mim mesmo a partir de seus escritos.” 4
É possível notar, ao se ler os escritos de Calvino, que em diversos momentos ele evoca a semelhança entre seus ensinos e os de Agostinho para fazer valer sua argumentação. É como se ele dissesse, para fazer valer a autoridade de suas proposições: “estou assentado no trono de Santo Agostinho”, do mesmo modo que os sábios de Israel reafirmavam sua autoridade ao exclamar estarem sentados sobre o trono de Moisés.
Embora o mesmo não se dê com Armínio, a harmonia entre suas ideias e as de Calvino no que toca à predestinação e à atemporalidade de Deus é suficiente para demonstrar que ele não contestou a autoridade emanada de Agostinho. Com efeito, os primeiros reformadores, em relação a esse assunto, pareciam todos navegar pelas mesmas águas. Lutero, monge agostiniano, reconhece a influência que sofreu de Agostinho, ao afirmar que “no começo de minha carreira, como professor de teologia, eu não simplesmente lia Agostinho, mas devorava suas obras com voracidade”5. Melancthon, outro importante reformador, afirmou que Lutero foi “voz intercambiável com a de Agostinho; uma voz que renovava o ensino primitivo da igreja”6. O erudito batista Timothy George, ao falar da influência do pensamento agostiniano na Reforma, chega a afirmar que “a linha principal da Reforma Protestante pode ser vista como uma aguda agostinianização do cristianismo”7.
Agostinho e a atemporalidade de Deus
Uma vez que Agostinho pode ser apontado como uma importante fonte de inspiração de Calvino e Armínio para suas compreensões a respeito de Deus, não é em vão o esforço de investigar de onde o próprio Agostinho tirou a ideia de um Deus atemporal. Não cabe aqui, porém, uma exaustiva biografia deste pensador. O propósito é apenas lembrar como a historiografia geral o descreve, o que é suficiente para demonstrar o ponto em questão.
Agostinho foi um teólogo e filósofo católico que viveu entre os anos 354 e 430 D.C. Durante parte de sua vida foi adepto do maniqueísmo, religião de origem persa a qual prega, entre outras coisas, que a matéria é intrinsecamente má, e em seus escritos defendeu as ideias de pecado original e depravação total do ser humano. A Santo Agostinho é creditado importante destaque dentro da filosofia patrística, vertente que mescla o pensamento judaico-cristão à filosofia grega, especialmente platônica. E aqui já chegamos ao ponto chave: o vínculo entre Agostinho e Platão, que fica ilustrado nas seguintes citações:
"Agostinho posicionou-se como um defensor da tese de Justino: de que a filosofia grega antiga, mesmo sendo pagã, forneceria um meio de compreensão de questões fundamentais para o cristianismo."8
“Santo Agostinho foi uma das principais figuras que mesclou filosofia grega com as tradições religiosas judaica e cristã”9
A enciclopédia Stanford, a respeito de Agostinho, registra ainda:
“Ao longo de sua obra, ele se envolve com a filosofia pré e não cristã, muitas das quais ele conhecia de primeira mão. O platonismo, em particular, permaneceu um ingrediente decisivo de seu pensamento.”10
Surge assim mais um elo da corrente: por ter aderido ao platonismo como base filosófica, Agostinho está conectado a Platão.
Platão
Chegamos assim, por fim, a uma pergunta decisiva: qual era o pensamento de Platão a respeito de Deus? Dada a extensa literatura disponível, é conhecimento comum e consensual o fato de que Platão cria em uma divindade imutável e atemporal. Dois textos ilustram bem seu pensamento. Em relação à imutabilidade de Deus ele afirma:
“É impossível que um deus concorde em transformar-se (…) permanece sempre na forma que lhe é própria.”11
Em seu livro Timeu, nas seções 37d-38b12, por sua vez, Platão afirma que Deus criou o tempo, mas não é afetado por ele e portanto não poderia interagir com a sucessão de eventos históricos.
Segundo Platão, tudo que está sujeito ao tempo é corruptível. Segue-se que o universo inteiro, sujeito ao tempo, está imerso em corruptibilidade. Deus habitaria isolado no mundo das formas, onde não há tempo e, portanto, corruptibilidade.
O mais importante a se destacar aqui é que, conforme os historiadores, Platão, que viveu entre 428 e 347 A.C., no período intertestamentário (516 BC-70 AD), não teve contato com nenhum texto bíblico, ou seja, nada do que hoje conhecemos como antigo testamento. Suas ideias nascem totalmente à parte daquilo que consideramos como verdade revelada. As ideias da imutabilidade e atemporalidade de Deus são, portanto, 100% pagãs. Originam-se de uma mente pagã não esclarecida pelo evangelho eterno. Conforme afirmou Cristo: “a salvação vem dos judeus” (João 4:22), e não dos gregos.
Primeiras conclusões
E aqui chegamos ao final dessa primeira parte com o seguinte encadeamento de afirmações:
(1) O trono de Deus está em risco;
(2) O professo povo de Deus não reconhece tal fato por conta da crença na onipotência e/ou onisciência absoluta de Deus;
(3) Esses ensinamentos estão na base dos principais paradigmas teológicos do protestantismo, quais sejam o calvinismo e o arminianismo;
(4) Ambas as correntes afirmam a onipotência e onisciência absolutas de Deus com base na ideia de predestinação incondicional ou absoluta;
(5) A ideia de predestinação incondicional ou absoluta está intimamente ligada à ideia da atemporalidade de Deus;
(6) Calvino, Armínio e Lutero professaram a atemporalidade de Deus com base nos ensinos de Santo Agostinho;
(7) Este aprendeu tal ensinamento a partir da filosofia grega, especialmente de Platão;
(8) Platão, filósofo secular, propôs a atemporalidade de Deus com base em suas próprias reflexões, não escreveu inspirado por Deus e nem mesmo teve contato com uma única frase da Bíblia;
(9) A ideia da atemporalidade de Deus tem sua gênese, portanto, na mente de um ser humano a quem Deus não revelou verdade alguma.
(10) Conclui-se que a atemporalidade de Deus deve ser descartada em conjunto com toda a sequência lógica que dela parte: a predestinação incondicional ou absoluta, a causação ancestral de toda história e/ou a presciência dela partindo de Deus e a negação do risco ao trono de Deus.
Nas próximas partes, visitaremos a Bíblia e o Espírito de Profecia, a fim de reconstruir uma imagem de Deus que não parte da filosofia grega, mas da própria verdade revelada, a qual permite compreender com mais clareza o Deus cujo trono está ameaçado.
Referências bibliográficas
1 Calvino, Institutes of the Christian Religion. Book 3, Chapter 21, Section 5.
2 Arminius, J. (2011), Arminius Speaks: Essential Writings on Predestination, Free Will, and the Nature of God (J. D. Wagner, Ed.). Eugene, OR: Wipf & Stock. pp.7.
3James Nichols, The Works of James Arminius, Vol. 1 (London: Printed for Longman, Hurst, Rees, Orme, Brown and Green, 1825), pp. 589-590.
4Calvino, A Treatise on the Eternal Predestination of God, pp. 38.
5 Martinho Lutero. Luther Works, LI, xviii.
6 Peter Fraenkel, Testimonia Patrum: The Function of the Patristic Argument in the Theology of Philip Melanchthon (Genebra: Droz, 1961), p. 32.
7 Timothy George. Teologia dos Reformadores (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2004), p.76.
8Francisco Porfírio, Biografia de Santo Agostinho. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/biografia/santo-agostinho.htm.
9 Educabras, Aula sobre Santo Agostinho. Disponível em: https://www.educabras.com/aula/santo-agostinho.
10Stanford Encyclopedia of Philosophy, Saint Augustine. Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/augustine/.
11 Platão, A República. Livro 2, pp. 90-92.
12 Platão, Timeu. Seções 37d-38b.
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